terça-feira, 3 de outubro de 2017

Regras são regras. Ou não!



O primeiro princípio da lógica, chamado de princípio de identidade, afirma que o que é é. Em decorrência deste, temos, automaticamente, um segundo princípio: o que não é não é. E, nessa encruzilhada lógica, os antigos filósofos se depararam com uma questão: Se o que é é e o que não é não é, como seria possível o devir – ou seja, a passagem do não ser ao ser e vice-versa?

Aristóteles deixou-nos uma contribuição interessante para a resolução da questão. Para o estagirita, apesar de ser verdade que o ser é e o não ser não é, é preciso perceber que o ser se apresenta de dois modos distintos: em potência e em ato. Desta forma, uma árvore, por exemplo, quando é apenas uma semente, já pode ser considerada, de um ponto de vista ontológico, uma árvore, mas uma árvore em potência. Ao passo que todo seu potencial for se atualizando, ela vai se transformando até se tornar uma árvore em ato. O movimento, assim, de uma forma geral, seria justamente essa passagem da potência ao ato.

Ora, se, até nos terrenos frios da ontologia, o movimento e a transformação são possíveis, quem dirá no campo da política, onde nós mesmos somos os atores do teatro social.

Regras são regras. É verdade.

Contudo, apesar de logicamente válida, essa afirmação não é aceitável de um ponto de vista humano, considerando o humano em suas diversas dimensões, que, obviamente, estão para muito além da dimensão lógica.

Por incrível que pareça, apesar de o Cristianismo – como quase todas as religiões – ter se constituído como um conjunto de regras inúteis que acaba servindo só para amarrar as pessoas em seus próprios medos e serem, facilmente, dominadas, foi com Jesus que eu aprendi sobre a natureza das regras.

Se tinha uma coisa que havia nos tempos de Jesus, era regra. A chamada Lei de Moisés, seguida pelos judeus, regulava todas as instâncias da vida, desde os rituais, as festas, os negócios, a justiça, etc. Era lei que não acabava mais.

Jesus, obviamente, descumpriu boa parte delas. Mas, apesar disso, ele mesmo afirmou que não tinha vindo para quebrar a lei, mas para cumpri-la. A contradição – pelo menos aparente – parece ser a marca registrada dos grandes mestres. Estão cagando para a lógica. Talvez, já a tenham superado...

Mas, ainda assim, quando questionado pelos que se incomodavam com sua liberdade, Jesus explicou com clareza: a lei foi criada para o homem, não o homem para a lei!

E, de fato, toda vez que nos esquecemos deste óbvio, acabamos criando um monstro que nos engole e nos torna tão monstruosos quanto ele.

Nenhuma regra existe por si mesma. Foram todas criadas por nós e para nós, em um determinado momento do tempo onde o estado de consciência de uma coletividade assim julgou necessário.

É natural, portanto, que, conforme esse estado de consciência vai galgando novos patamares, essas mesmas regras também demandem alterações ou, melhor ainda, simplesmente se tornem desnecessárias.

E é por isso que Jesus foi e é tão mal compreendido. Ele amou. Simplesmente, amou. E no amor – aquele amor verdadeiro que lança fora todo o medo, de que falou João –, não há regras. Ele mesmo – o amor – é a única lei.

A crucificação não foi à toa. Não há nada mais revolucionário que o amor.

Para compreender melhor a relação entre lei e existência humana, entretanto, não poderia deixar de lembrar daquilo que nos traz a sensibilidade teológica – se é que isso existe – de Nilton Bonder, o rabino gente boa da Barra da Tijuca.

Em seu clássico A Alma Imoral, Bonder se utiliza da dicotomia corpo/alma, criada pela razão para explicar a experiência humana, para fazer um paralelo com outra dicotomia que criamos para explicar o desenvolvimento do nosso próprio ser e do mundo no qual estamos inseridos: a dicotomia tradição/traição.

Se por um lado, o corpo – com toda sua necessidade de preservação e manutenção da espécie – estaria ligado analogicamente à tradição, que é a responsável pela criação de um sentido não só social, como existencial, conferindo uma ordem ao nosso universo, por outro, a alma –rebelde por natureza –, responsável por fazer arder em nós a chama da transformação, seria aquela “parte” do ser encarregada de romper com toda e qualquer barreira que se coloque no caminho do desenvolvimento humano.

Por isso, a alma trai. Porque precisa trair para ser.

E, por isso, o corpo insiste na tradição. É nela que ele encontra sua raiz.

Mas, assim como um corpo sem alma não passa de um cadáver, uma tradição que se recusa ser traída, não revela mais que um povo morto. O fim de uma história.

Regras são regras. É verdade.

Mas, como a verdade cheira a morte, quebrá-las pode ser a maneira mais digna de honrar a vida.