segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O velho Newton, o novo mundo e a greve da educação


Para toda ação corresponde uma reação de mesma direção e sentido contrário. Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço e, muito menos, o mesmo corpo ocupar lugares distintos. É o que todos nós aprendemos na escola. Fomos treinados na dinâmica do “faça isso e acontecerá aquilo!”. Essa matriz de pensamento é a que, durante muito tempo, serviu para pautar nossa ação no mundo e moldou nossa maneira de enxergá-lo.

Contudo, com o pujante despertar de consciência pelo qual o planeta vem passando, refletido, inclusive, no campo científico – onde as novas descobertas jogaram por terra todo nosso limitadíssimo conceito de espaço-tempo –, essa abordagem vai se tornando cada dia mais obsoleta.

Finalmente, parece que a ciência começa a admitir o que sempre fora uma realidade para as diversas tradições religiosas: a não objetividade da vida e a existência não mais como um fenômeno linear, mas multidimensional, composto por uma teia de infinitas relações que vão muito além de qualquer dialética reducionista.

Descobertas incríveis que começam a abalar não só tudo aquilo que pensamos a respeito do mundo e da sociedade por séculos, mas que nos lançam um novo desafio: como lidar com esse novo mundo que segue se desenhando? Como nos conectarmos de maneira positiva e afirmativa nessa relação autopoiética que é a construção do nosso ser no mundo?

Certamente, as respostas ainda não existem. E, por um motivo bastante óbvio. Nós somos a resposta. Como todo período de transição, é necessário um tempo para nos adaptarmos ao conhecimento que nos chega e traduzi-lo em ação na solidez da terra. Por isso, CRISE! Palavra que tem circulado amplamente nos meios de comunicação e nas conversas de botequim, mas, geralmente, muito mal compreendida.

Como várias culturas antigas nos ensinam, crise é um tempo de oportunidade. Assim como quando ficamos doentes recebemos do universo a chance de nos retirarmos um pouco de nossas atividades corriqueiras para observar o que o corpo está nos comunicando, um tempo de crise é – antes de tudo – um tempo de reflexão. Um tempo onde temos a oportunidade de ponderar, num nível mais amplo, onde e porque estamos doentes enquanto sociedade.

Para uns, crise econômica. Para outros, crise moral. Ambas as abordagens, entretanto, parecem não dar conta da questão.

Economicamente, fomos adestrados na escassez. Nos contaram que os recursos são escassos e que não há para todo mundo. É a base da própria ciência econômica. Uma mentira afirmada muitas vezes que serve para sustentar nosso Contrato Social, a mentira subsequente que dela decorre. Afinal, num ambiente onde não há recursos para todos, os homens entram em estado de guerra e, consequentemente, justifica-se a dominação de um poder superior que, heroicamente, nos livrará da nossa própria animalidade: nosso amiguinho, o Estado!

Do ponto de vista moral, a historinha também não é lá das mais interessantes nem convincentes. O mundo é dividido entre pessoas de bem e pessoas do mal. Eu, minha família e meus amigos somos representantes da verdade, da lealdade e dos bons costumes. Se estivéssemos no poder, certamente, o país – ou o mundo – seria diferente. O resto é corrupto e safado. Todos deveriam ser condenados a morrer fritos numa panela de óleo quente. Apesar de raso, é um pensamente que permite que minha consciência siga dormindo tranquila em seu sono profundo. E desempenha um papel importantíssimo na conservação do status quo.

Nos dois casos a estrutura do problema não é alcançada. E digo estrutura porque, sim, não creio que a crise que vivemos seja de natureza conjuntural. Ela é profunda e toca no âmago da nossa estruturação social – para não dizer humana.

Durante séculos, abrimos mão da nossa humanidade e delegamos às instituições a responsabilidade por nossas vidas. Como crianças que éramos – de um ponto de vista consciencial –, necessitamos por muito tempo de figuras paternas que nos conduzissem e nos dissessem por onde deveríamos ir. Entregamos nosso poder pessoal e social ao Estado e criamos um monstro que passou a nos dominar.

Num determinado momento da história, nos tornamos adolescentes, descobrimos as cadeias que nos oprimiam e sonhamos com a liberdade. Nos rebelamos. Fomos de encontro às garras do Leviatã, acreditando que seríamos vitoriosos. Algumas conquistas pontuais foram feitas, mas a energia despendida e o sacrifício – de vidas, inclusive – foram enormes.

E agora, nesse momento-chave em que vivemos, tenho a impressão de que começamos a ingressar em nossa fase adulta. E tornar-se adulto, em termos políticos, é um salto. Um salto da culpabilização do Outro para a responsabilização do Eu. Não há liberdade maior que essa.

Sou professor. Professor de Filosofia numa instituição social chamada Escola. No desempenho desse papel – que mistura-se de maneira indiscernível com aquilo que entendo ser, hoje, minha missão existencial – tomo muito cuidado para não ensinar nada àqueles que são chamados de meus alunos. Não acho que ensinar seja a minha função. Ensino é colonização. É opressão. É algo imposto de fora para dentro. É fruto da demanda de uma sociedade moribunda que alimenta sua própria doença.

Meu papel como professor é expor-me ao relacionamento com aqueles seres com os quais tanto eu aprendo. Meu trabalho na escola não se diferencia do meu trabalho fora da escola. Só tenho, de fato, uma coisa a realizar na vida: ser humano. Sendo humano na convivência com eles, tenho a oportunidade de experienciar um ambiente de Verdade, que, de maneira muito natural, acaba constituindo-se num terreno fértil para a aprendizagem.

E aprendizagem é algo que, além de relacionamento, fala de paixão. O aprender é um fenômeno humano que, ao contrário do que nos ensinaram na escola e na universidade, não se fundamenta na razão, mas na vontade. Ninguém aprende algo contra sua vontade. O grande desafio de qualquer educador reside, “simplesmente”, em criar ambientes onde essa vontade possa se sentir realmente livre e o ser possa entrar em contato com a sua paixão. Dado esse start, nesse mundo onde a informação já circula livremente, o professor vai se tornando uma figura cada vez mais desnecessária e o aluno vai desenvolvendo seu ser de forma autônoma.

E é impossível desenvolver a responsabilidade que caracteriza e que dá sustentação a um existir maduro – seja individual ou socialmente – sem essa autonomia. Nesse sentido, tenho plena consciência de que, apesar de trabalhar numa instituição de ensino pública, meu papel ali dentro não visa fortalecê-la, mas destruí-la. Visa colaborar, de alguma maneira, para o desenvolvimento de seres autônomos que, no desenrolar natural de suas vidas, ajudarão a construir uma sociedade mais justa e mais livre, não a partir de instituições boazinhas, mas da justiça e da liberdade que, potencialmente, poderá vir a surgir como fruto de sua conexão com o mundo. Visa cooperar na construção de uma sociedade em que a própria escola desaparecerá e que o conhecimento será novamente reconhecido como livre.

Como educador, nesse momento em que a educação no Brasil e, especialmente no meu estado – o Rio de Janeiro – passa por um processo de convalescência, não posso deixar de admitir que diluída em minha tristeza há um bocado de alegria. Apesar de ter necessidades materiais e desejar ser remunerado de maneira digna e ter condições de trabalho coerentes com a natureza da função que desempenho, tenho a clareza de que apenas isso não resolveria o problema da educação no Brasil hoje. Fico feliz porque essa crise faz brilhar em mim a esperança de um ambiente educacional mais adequado às demandas do novo tempo que vem surgindo.

Penso que a greve dos profissionais da educação – acho esse termo horrível! – é um movimento justo e que merece todo o nosso respeito. Mas, acho pouco. Se o professor fosse remunerado como um parlamentar e a escola tivesse infraestrutura de gabinete político, a educação continuaria perversa e excludente – os conselhos de classe continuariam existindo! Afinal, embora o dinheiro seja uma energia necessária à vida na matéria, educação não se faz só com dinheiro. Educação é fruto de amor. Fruto do transbordamento daqueles que, pelo caminho, encontraram algo que julgaram valer a pena compartilhar com o outro.

Nesse sentido, embora a paralisação seja fundamental – reafirmo! – para aqueles que assim desejam expressar sua insatisfação com o atual estado de coisas, creio que a revolução mais profunda seguirá seu caminho solitário e silencioso, independente dos movimentos de massa. Seguirá no interior de cada um e se expressará no dia-a-dia do relacionamento professor-aluno.

E nesse momento de ânimos exaltados, meu desejo é que a nossa maior greve seja a de rancor. Que possamos nos lembrar sempre que o Estado, assim como qualquer outra instituição, não tem existência própria. É apenas reflexo de quem somos enquanto indivíduos e enquanto sociedade. Que sigamos nosso caminho com honestidade existencial e aos mais ousados, uma sugestão: amemo-nos e curemo-nos. Educar é doar-se. Não há conteúdo mais elevado a ser transmitido do que aquilo que somos. Que sejamos boas oferendas àqueles que cruzam nossos caminhos!