Para
toda ação corresponde uma reação de mesma direção e sentido contrário. Dois
corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço e, muito menos, o mesmo corpo
ocupar lugares distintos. É o que todos nós aprendemos na escola. Fomos
treinados na dinâmica do “faça isso e acontecerá aquilo!”. Essa matriz de
pensamento é a que, durante muito tempo, serviu para pautar nossa ação no mundo
e moldou nossa maneira de enxergá-lo.
Contudo,
com o pujante despertar de consciência pelo qual o planeta vem passando,
refletido, inclusive, no campo científico – onde as novas descobertas jogaram
por terra todo nosso limitadíssimo conceito de espaço-tempo –, essa abordagem
vai se tornando cada dia mais obsoleta.
Finalmente,
parece que a ciência começa a admitir o que sempre fora uma realidade para as
diversas tradições religiosas: a não objetividade da vida e a existência não
mais como um fenômeno linear, mas multidimensional, composto por uma teia de
infinitas relações que vão muito além de qualquer dialética reducionista.
Descobertas
incríveis que começam a abalar não só tudo aquilo que pensamos a respeito do
mundo e da sociedade por séculos, mas que nos lançam um novo desafio: como
lidar com esse novo mundo que segue se desenhando? Como nos conectarmos de
maneira positiva e afirmativa nessa relação autopoiética
que é a construção do nosso ser no mundo?
Certamente,
as respostas ainda não existem. E, por um motivo bastante óbvio. Nós somos a
resposta. Como todo período de transição, é necessário um tempo para nos
adaptarmos ao conhecimento que nos chega e traduzi-lo em ação na solidez da
terra. Por isso, CRISE! Palavra que tem circulado amplamente nos meios de
comunicação e nas conversas de botequim, mas, geralmente, muito mal
compreendida.
Como
várias culturas antigas nos ensinam, crise é um tempo de oportunidade. Assim
como quando ficamos doentes recebemos do universo a chance de nos retirarmos um
pouco de nossas atividades corriqueiras para observar o que o corpo está nos
comunicando, um tempo de crise é – antes de tudo – um tempo de reflexão. Um
tempo onde temos a oportunidade de ponderar, num nível mais amplo, onde e
porque estamos doentes enquanto sociedade.
Para
uns, crise econômica. Para outros, crise moral. Ambas as abordagens,
entretanto, parecem não dar conta da questão.
Economicamente,
fomos adestrados na escassez. Nos contaram que os recursos são escassos e que
não há para todo mundo. É a base da própria ciência econômica. Uma mentira
afirmada muitas vezes que serve para sustentar nosso Contrato Social, a mentira
subsequente que dela decorre. Afinal, num ambiente onde não há recursos para
todos, os homens entram em estado de guerra e, consequentemente, justifica-se a
dominação de um poder superior que, heroicamente, nos livrará da nossa própria
animalidade: nosso amiguinho, o Estado!
Do
ponto de vista moral, a historinha também não é lá das mais interessantes nem
convincentes. O mundo é dividido entre pessoas de bem e pessoas do mal. Eu,
minha família e meus amigos somos representantes da verdade, da lealdade e dos
bons costumes. Se estivéssemos no poder, certamente, o país – ou o mundo –
seria diferente. O resto é corrupto e safado. Todos deveriam ser condenados a
morrer fritos numa panela de óleo quente. Apesar de raso, é um pensamente que
permite que minha consciência siga dormindo tranquila em seu sono profundo. E
desempenha um papel importantíssimo na conservação do status quo.
Nos
dois casos a estrutura do problema não é alcançada. E digo estrutura porque, sim,
não creio que a crise que vivemos seja de natureza conjuntural. Ela é profunda
e toca no âmago da nossa estruturação social – para não dizer humana.
Durante
séculos, abrimos mão da nossa humanidade e delegamos às instituições a
responsabilidade por nossas vidas. Como crianças que éramos – de um ponto de
vista consciencial –, necessitamos por muito tempo de figuras paternas que nos
conduzissem e nos dissessem por onde deveríamos ir. Entregamos nosso poder
pessoal e social ao Estado e criamos um monstro que passou a nos dominar.
Num
determinado momento da história, nos tornamos adolescentes, descobrimos as
cadeias que nos oprimiam e sonhamos com a liberdade. Nos rebelamos. Fomos de
encontro às garras do Leviatã, acreditando que seríamos vitoriosos. Algumas
conquistas pontuais foram feitas, mas a energia despendida e o sacrifício – de
vidas, inclusive – foram enormes.
E
agora, nesse momento-chave em que vivemos, tenho a impressão de que começamos a
ingressar em nossa fase adulta. E tornar-se adulto, em termos políticos, é um
salto. Um salto da culpabilização do Outro para a responsabilização do Eu. Não
há liberdade maior que essa.
Sou
professor. Professor de Filosofia numa instituição social chamada Escola. No
desempenho desse papel – que mistura-se de maneira indiscernível com aquilo que
entendo ser, hoje, minha missão existencial – tomo muito cuidado para não
ensinar nada àqueles que são chamados de meus alunos. Não acho que ensinar seja
a minha função. Ensino é colonização. É opressão. É algo imposto de fora para
dentro. É fruto da demanda de uma sociedade moribunda que alimenta sua própria
doença.
Meu
papel como professor é expor-me ao relacionamento com aqueles seres com os
quais tanto eu aprendo. Meu trabalho na escola não se diferencia do meu
trabalho fora da escola. Só tenho, de fato, uma coisa a realizar na vida: ser
humano. Sendo humano na convivência com eles, tenho a oportunidade de
experienciar um ambiente de Verdade, que, de maneira muito natural, acaba
constituindo-se num terreno fértil para a aprendizagem.
E
aprendizagem é algo que, além de relacionamento, fala de paixão. O aprender é
um fenômeno humano que, ao contrário do que nos ensinaram na escola e na
universidade, não se fundamenta na razão, mas na vontade. Ninguém aprende algo
contra sua vontade. O grande desafio de qualquer educador reside,
“simplesmente”, em criar ambientes onde essa vontade possa se sentir realmente
livre e o ser possa entrar em contato com a sua paixão. Dado esse start, nesse mundo onde a informação já
circula livremente, o professor vai se tornando uma figura cada vez mais
desnecessária e o aluno vai desenvolvendo seu ser de forma autônoma.
E
é impossível desenvolver a responsabilidade que caracteriza e que dá
sustentação a um existir maduro – seja individual ou socialmente – sem essa
autonomia. Nesse sentido, tenho plena consciência de que, apesar de trabalhar
numa instituição de ensino pública, meu papel ali dentro não visa fortalecê-la,
mas destruí-la. Visa colaborar, de alguma maneira, para o desenvolvimento de
seres autônomos que, no desenrolar natural de suas vidas, ajudarão a construir
uma sociedade mais justa e mais livre, não a partir de instituições boazinhas,
mas da justiça e da liberdade que, potencialmente, poderá vir a surgir como
fruto de sua conexão com o mundo. Visa cooperar na construção de uma sociedade
em que a própria escola desaparecerá e que o conhecimento será novamente
reconhecido como livre.
Como
educador, nesse momento em que a educação no Brasil e, especialmente no meu
estado – o Rio de Janeiro – passa por um processo de convalescência, não posso
deixar de admitir que diluída em minha tristeza há um bocado de alegria. Apesar
de ter necessidades materiais e desejar ser remunerado de maneira digna e ter
condições de trabalho coerentes com a natureza da função que desempenho, tenho
a clareza de que apenas isso não resolveria o problema da educação no Brasil
hoje. Fico feliz porque essa crise faz brilhar em mim a esperança de um
ambiente educacional mais adequado às demandas do novo tempo que vem surgindo.
Penso
que a greve dos profissionais da educação – acho esse termo horrível! – é um
movimento justo e que merece todo o nosso respeito. Mas, acho pouco. Se o
professor fosse remunerado como um parlamentar e a escola tivesse infraestrutura
de gabinete político, a educação continuaria perversa e excludente – os
conselhos de classe continuariam existindo! Afinal, embora o dinheiro seja uma
energia necessária à vida na matéria, educação não se faz só com dinheiro.
Educação é fruto de amor. Fruto do transbordamento daqueles que, pelo caminho,
encontraram algo que julgaram valer a pena compartilhar com o outro.
Nesse
sentido, embora a paralisação seja fundamental – reafirmo! – para aqueles que
assim desejam expressar sua insatisfação com o atual estado de coisas, creio
que a revolução mais profunda seguirá seu caminho solitário e silencioso,
independente dos movimentos de massa. Seguirá no interior de cada um e se
expressará no dia-a-dia do relacionamento professor-aluno.
E
nesse momento de ânimos exaltados, meu desejo é que a nossa maior greve seja a de
rancor. Que possamos nos lembrar sempre que o Estado, assim como qualquer outra
instituição, não tem existência própria. É apenas reflexo de quem somos
enquanto indivíduos e enquanto sociedade. Que sigamos nosso caminho com
honestidade existencial e aos mais ousados, uma sugestão: amemo-nos e curemo-nos. Educar
é doar-se. Não há conteúdo mais elevado a ser transmitido do que aquilo que
somos. Que sejamos boas oferendas àqueles que cruzam nossos caminhos!
