A
estreiteza da razão isolada jamais dará conta da largura da vida. Não quero
afirmar com isso que a razão não tenha seu lugar. Que até certo ponto da
caminhada, ela não possa nos ser uma grande aliada no desvendar do mundo e de
nós mesmos. Por mais rebelde que seja minha alma, minha cabecinha analítica
jamais me permitiria a indelicadeza de cuspir tão descaradamente no prato que
por tanto tempo comi e não pretendo parar de comer.
Gosto dos caminhos da razão. É um mundo que, de certa
forma, me fascina. Certamente, não foi à toa que, depois de tantas idas e
vindas acadêmicas, foi na filosofia que firmei a minha tenda.
Entretanto, o fazer filosófico atrelado, exclusivamente,
ao aspecto racional da mente , sobre o qual –
querendo ou não – foi
desenvolvido, praticamente, todo o pensamento ocidental, sempre me soou bobo
demais. É como se, arrogando-se da potência de um de seus instrumentos, a
filosofia tivesse esquecido-se da beleza de sua obra. Como a criança que se
lançou a construir seu castelo de areia e distraiu-se brincando com a pazinha.
Esse racionalismo que está na própria essência da ideia de
filosofia – que, aliás, como conceito, faz questão de manter-se circunscrito a
um tipo de pensamento muito específico que surgiu na Grécia há 2500 anos e acabou
constituindo-se a própria maneira de se relacionar com o mundo, não de toda,
mas de uma parcela da humanidade – transformou-se, dessa maneira, numa espécie
de ironia da própria razão. Sequestrada de sua terra mater – a
integridade inquebrantável do ser –, é como se a razão sofresse uma alteração
em sua própria estrutura, passando a operar em seu sentido inverso. Assim é que
a busca pela verdade, questão chave da filosofia, acaba transformando-se numa
grande piada cósmica. Uma piada dialética, claro.
A questão é que a razão, ao ser imbuída de uma primazia
no processo de conhecimento, acaba por tornar-se arrogante. E o arrogante é,
entre outras coisas, aquele que não vê. Com
isso, muitas vezes, a filosofia – que, a priori, nos remeteria se não ao amor,
mas, pelo menos, a um apreço pela sabedoria – acaba convertendo-se na expressão
maior da tolice humana. E o filósofo, perdido em suas muitas abstrações
desconexas – ainda que sejam abstrações de temática existencialista! –,
afasta-se cada vez mais da real intenção de sua busca.
Esse tipo de filosofia, incapaz de reconhecer e absorver
os outros caminhos do conhecer humano, é expressa de forma muito interessante
no famoso episódio evangélico em que Jesus é preso e encontra-se diante de
Pilatos para ser interpelado. O texto mostra que, ao afirmar que seu reino não
era deste mundo – remetendo-se, claramente, a uma realidade interior –, sua
fala é interpretada de maneira literal, fazendo com que Pilatos pergunte se,
então, ele era um rei. Diante da resposta de Jesus, de que era para isso que
tinha vindo ao mundo, para dar testemunho da verdade, Pôncio Pilatos, possuído
pelo mais puro espírito filosófico, deflagra, então, sua fatídica tréplica: o
que é a verdade?
E a pergunta o que
é? – talvez a mais importante da filosofia –, ao esperar como resposta
sempre a definição de um conceito, revela, como nenhuma outra, o paradoxo
perverso no qual a filosofia cai. Afinal, se um conceito só pode ser obtido
através de um processo de abstração operado pela razão, ele nunca será capaz de
alcançar a verdade em um sentido mais pleno. Por isso, diante de um ser
inteiro, que viveu divinamente sua humanidade, desconhecendo divisão e
fragmentação – diante da verdade encarnada! –, Pilatos foi incapaz de
reconhecer a verdade. Ele esperava uma ideia. Não foi capaz de suportar a
realidade de uma verdade que caminhava sobre pés que tocavam o chão. Olhando
nos olhos da verdade, só conseguiu fazer filosofia.
Esse tipo de filosofia, contudo, não é, certamente, o
único possível . O próprio cristianismo, abordado de outro prisma que não o da
religião, é capaz de nos fornecer direções, se não completamente satisfatórias,
no mínimo bastante interessantes.
O mesmo Evangelho de João, por exemplo, já começa com a
encarnação do logos. Cristo é não só
verbo que se faz carne, mas aquele que estabelece uma relação de identidade
entre o seu ente – não um ser abstrato! – e a verdade. Uma noção de verdade que – não podemos
esquecer – encontra seu sentido no conjunto das palavras que a acompanham: caminho
e vida (Eu sou o caminho, a verdade e a vida).
Portanto, diferente do logos abstrato, especulativo e discursivo do pensamento filosófico
tradicional, o logos de Jesus é um logos encarnado. E é apenas nesse
mistério de descida do logos à terra
que a existência pode, então, ser identificada à verdade. Longe dos conceitos e
dos argumentos, o logos da filosofia
crística – chamemos assim – é um logos
caminhante. Um logos que, no caminho,
se faz vida. Vida inteira.
E esse logos,
naturalmente, ao se lançar na relação com o todo da existência, interagindo com
as dimensões do corpo, do espírito e também com as dimensões transracionais da
mente, comporta-se e expressa-se de maneira completamente diferente. É um logos que se afirma não no discurso, mas
na presença, descansando na dupla tranquilidade de não ter posições a sustentar
e, também, de não desperdiçar suas “pérolas com porcos”. Um logos que, enfim, transformando-se numa
espada afiada, passa a trazer em si a força da inteireza.
Dessa maneira, creio que a filosofia não está de todo
perdida. Além do diálogo com as tradições do oriente e do resgate do
conhecimento ancestral de vários povos nativos espalhados ao redor do mundo,
cada qual com sua sabedoria, temos no próprio ocidente oportunidades de contato
com maneiras de se relacionar com o pensamento distintas daquela que até hoje
tem sido hegemônica por aqui e que podem, e muito, enriquecer nosso pensar
filosófico, transformando-o num sentir-pensar-fazer filosófico.
Afinal,
parafraseando o bigode mais bonito da Alemanha, também eu não poderia acreditar
numa filosofia que não soubesse dançar!
