quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Cálice



Não argumenta com teus demônios
São mestres da lógica e da retórica
Serás ludibriado tantas vezes quantas
Enveredares por tão ardiloso caminho

Tua mente, soldado do teu ego
Corrupta e temerosa por natureza
Oferecerá a ti toda sorte de encantos de racionalidade
Com frívolas promessas de eliminar teus conflitos
E suprimir a tua dor

Não te enganes!

Se, verdadeiramente, almejas a paz e a beleza
Que emanam da luz do teu próprio sol
Estão vetados a ti a autopiedade
E a poupança de si mesmo

Agora vai e desce aos teus infernos
Experimenta por inteiro os teus demônios
E, oferecendo um bride ao diabo
Bebe teu cálice até a última gota

Depois que todos por ti tiverem passado
E, tendo sido, um a um, acolhidos e dignificados
Terás, então, chegado um pouco mais perto
Do mais precioso dos tesouros
A crueza do que és!

 Nu diante de si mesmo
Tendo encontrado na fraqueza da tua miséria
A força e a pujança da glória que há em ti
Terás conhecido a Tua Verdade

 E esta Verdade – somente esta que é a Tua – te libertará!

Dorme em paz


quarta-feira, 20 de maio de 2015

Pró-curando o Ser

             

              
           Não há cura sem procura. Aliás, se pararmos para observar com atenção essas duas palavras, veremos que elas têm uma relação muito mais profunda do que sua mera semelhança fonética.

            Quando lidamos conosco nos níveis mais profundos da nossa alma – no âmbito do Ser –, a busca que empreendemos não é uma busca qualquer. O Ser que se lança na procura de si mesmo não é, por exemplo, como o indivíduo que se põe a procurar por algo no caderno dos classificados. Enquanto este último deseja e, em parte, depende de algo que lhe é exterior, o primeiro, tendo tudo aquilo de que precisa, procura por algo que já tem. Sua demanda, portanto, não é uma demanda real, mas nasce de uma percepção pouco clara da própria realidade. É fruto de um olhar estreito.

            Por isso, podemos compreender essa procura do homem por si mesmo como seu próprio caminho de cura. A cura desse olhar turvo que nos impede de visualizar todas as cores do nosso arco-íris de realidade. Um movimento que, ao lançar-nos para fora numa força existencial centrífuga, levando-nos ao encontro do mundo e do outro, paradoxalmente, acaba por arremessar-nos de volta para as regiões mais recônditas de nós mesmos, embalando-nos numa outra força existencial – agora centrípeta! –, que se apresenta em sentido contrário e possui igual ou – muitas vezes – maior intensidade que a primeira.

E, obviamente, esse processo de cura fundamental pelo qual todos nós – conscientes ou não – passamos, fala muito, também, não apenas dessas curas mais profundas que ocorrem no nível do nosso Ser, mas de todas as curas que experimentamos – ou não! – na materialidade do mundo manifesto.

Toda cura que experimentamos, experimentamos por graça. Cura é dom. Um transbordamento de vida que acontece sempre que tocamos a Lei maior que rege o cosmos, do qual somos parte. Contudo, apesar de ser um dom gratuito, temos também a clara percepção do outro lado da moeda: a cura faz também suas exigências. Aliás, a exigência é uma só: a pró-cura.

Para sermos curados é necessário que tenhamos, antes de qualquer coisa, uma atitude de pró-cura diante da vida. Algumas passagens das escrituras nos falam a esse respeito. “Buscar-me-eis, e me achareis, quando me buscardes de todo o vosso coração.”, profetizou Jeremias, em nome de Deus, ao povo de Israel. Séculos depois, andando pela Galiléia, Jesus deixou a mesma mensagem: “Pelo que eu vos digo: Pedi, e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei, e abrir-se-vos-á; pois todo o que pede, recebe; e quem busca acha; e ao que bate, abrir-se-lhe-á.”. Ou, se preferirmos um português mais claro e um discurso menos religioso, fiquemos com a boa e velha sabedoria popular: quem procura acha!

O fato é que a cura não é algo que uma pessoa possa fazer por outra. Não, pelo menos, sem que, antes, a pessoa faça por si mesma. É necessário um movimento de saída de si. Uma abertura. Não raras vezes, ao ser agradecido pelos milagres operados, a resposta de Jesus – em sua grosseria santa – àqueles que se prostravam diante dele era sempre a mesma: a tua fé te curou/salvou.

Com isso, entretanto, não estou afirmando que quem, porventura, esteja padecendo de alguma doença ou sofrimento de qualquer natureza, e ainda não foi curado, não o foi por falta de fé, de merecimento ou qualquer outra afirmação cruel desse tipo.

É preciso termos em mente que a cura é uma ação do Ser na sua relação com a existência. E como todo ato que se realiza no tempo, é um ato que está sempre no gerúndio. É um processo. Uma dinâmica existencial onde o mais precioso está para muito além da supressão de sintomas dolorosos que nos afligem. Está na reconexão que o indivíduo consegue estabelecer com o seu próprio poder pessoal. Em outras palavras, no reencontro do Ser com sua imagem e semelhança de Deus. Nesse contexto, a permanência de dores ou sofrimentos no caminho do pró-curador, muitas vezes, é, também, expressão da mesma graça de onde se origina toda cura.

Portanto, se ainda caminhamos por essas bandas dimensionais é porque estamos – todos – em nossos caminhos de cura. Num sentido mais amplo, poderia, inclusive, afirmar que existir – na Terra, pelo menos! – é, basicamente, curar-se. E a boa nova é que nada disso fala de uma meta, ou qualquer ponto fora de nós que devamos alcançar. Nós somos o caminho. Essa linda estrada onde a pró-cura simplifica-se a tal ponto, que, deixando pra trás toda percepção de falta, transforma-se – de maneira muito natural – em sua variante mais sublime e singela: a própria cura.

Assim, a todos aqueles que, como pró-curadores, se entregaram à assombrosa e deliciosa experiência da vida como caminho, uma ótima notícia: não temos para onde correr. Caminhemos e curemo-nos!


segunda-feira, 20 de abril de 2015

Filosofia Transracional


A estreiteza da razão isolada jamais dará conta da largura da vida. Não quero afirmar com isso que a razão não tenha seu lugar. Que até certo ponto da caminhada, ela não possa nos ser uma grande aliada no desvendar do mundo e de nós mesmos. Por mais rebelde que seja minha alma, minha cabecinha analítica jamais me permitiria a indelicadeza de cuspir tão descaradamente no prato que por tanto tempo comi e não pretendo parar de comer.

         Gosto dos caminhos da razão. É um mundo que, de certa forma, me fascina. Certamente, não foi à toa que, depois de tantas idas e vindas acadêmicas, foi na filosofia que firmei a minha tenda.

         Entretanto, o fazer filosófico atrelado, exclusivamente, ao aspecto racional da mente , sobre o qual –  querendo ou não –  foi desenvolvido, praticamente, todo o pensamento ocidental, sempre me soou bobo demais. É como se, arrogando-se da potência de um de seus instrumentos, a filosofia tivesse esquecido-se da beleza de sua obra. Como a criança que se lançou a construir seu castelo de areia e distraiu-se brincando com a pazinha.

          Esse racionalismo que está na própria essência da ideia de filosofia – que, aliás, como conceito, faz questão de manter-se circunscrito a um tipo de pensamento muito específico que surgiu na Grécia há 2500 anos e acabou constituindo-se a própria maneira de se relacionar com o mundo, não de toda, mas de uma parcela da humanidade – transformou-se, dessa maneira, numa espécie de ironia da própria razão. Sequestrada de sua terra mater – a integridade inquebrantável do ser –, é como se a razão sofresse uma alteração em sua própria estrutura, passando a operar em seu sentido inverso. Assim é que a busca pela verdade, questão chave da filosofia, acaba transformando-se numa grande piada cósmica. Uma piada dialética, claro.

            A questão é que a razão, ao ser imbuída de uma primazia no processo de conhecimento, acaba por tornar-se arrogante. E o arrogante é, entre outras coisas, aquele que não vê. Com isso, muitas vezes, a filosofia – que, a priori, nos remeteria se não ao amor, mas, pelo menos, a um apreço pela sabedoria – acaba convertendo-se na expressão maior da tolice humana. E o filósofo, perdido em suas muitas abstrações desconexas – ainda que sejam abstrações de temática existencialista! –, afasta-se cada vez mais da real intenção de sua busca.

        Esse tipo de filosofia, incapaz de reconhecer e absorver os outros caminhos do conhecer humano, é expressa de forma muito interessante no famoso episódio evangélico em que Jesus é preso e encontra-se diante de Pilatos para ser interpelado. O texto mostra que, ao afirmar que seu reino não era deste mundo – remetendo-se, claramente, a uma realidade interior –, sua fala é interpretada de maneira literal, fazendo com que Pilatos pergunte se, então, ele era um rei. Diante da resposta de Jesus, de que era para isso que tinha vindo ao mundo, para dar testemunho da verdade, Pôncio Pilatos, possuído pelo mais puro espírito filosófico, deflagra, então, sua fatídica tréplica: o que é a verdade?

            E a pergunta o que é? – talvez a mais importante da filosofia –, ao esperar como resposta sempre a definição de um conceito, revela, como nenhuma outra, o paradoxo perverso no qual a filosofia cai. Afinal, se um conceito só pode ser obtido através de um processo de abstração operado pela razão, ele nunca será capaz de alcançar a verdade em um sentido mais pleno. Por isso, diante de um ser inteiro, que viveu divinamente sua humanidade, desconhecendo divisão e fragmentação – diante da verdade encarnada! –, Pilatos foi incapaz de reconhecer a verdade. Ele esperava uma ideia. Não foi capaz de suportar a realidade de uma verdade que caminhava sobre pés que tocavam o chão. Olhando nos olhos da verdade, só conseguiu fazer filosofia.

            Esse tipo de filosofia, contudo, não é, certamente, o único possível . O próprio cristianismo, abordado de outro prisma que não o da religião, é capaz de nos fornecer direções, se não completamente satisfatórias, no mínimo bastante interessantes.

            O mesmo Evangelho de João, por exemplo, já começa com a encarnação do logos. Cristo é não só verbo que se faz carne, mas aquele que estabelece uma relação de identidade entre o seu ente – não um ser abstrato! – e a verdade.  Uma noção de verdade que – não podemos esquecer – encontra seu sentido no conjunto das palavras que a acompanham: caminho e vida (Eu sou o caminho, a verdade e a vida).

            Portanto, diferente do logos abstrato, especulativo e discursivo do pensamento filosófico tradicional, o logos de Jesus é um logos encarnado. E é apenas nesse mistério de descida do logos à terra que a existência pode, então, ser identificada à verdade. Longe dos conceitos e dos argumentos, o logos da filosofia crística – chamemos assim – é um logos caminhante. Um logos que, no caminho, se faz vida. Vida inteira.

            E esse logos, naturalmente, ao se lançar na relação com o todo da existência, interagindo com as dimensões do corpo, do espírito e também com as dimensões transracionais da mente, comporta-se e expressa-se de maneira completamente diferente. É um logos que se afirma não no discurso, mas na presença, descansando na dupla tranquilidade de não ter posições a sustentar e, também, de não desperdiçar suas “pérolas com porcos”. Um logos que, enfim, transformando-se numa espada afiada, passa a trazer em si a força da inteireza.

            Dessa maneira, creio que a filosofia não está de todo perdida. Além do diálogo com as tradições do oriente e do resgate do conhecimento ancestral de vários povos nativos espalhados ao redor do mundo, cada qual com sua sabedoria, temos no próprio ocidente oportunidades de contato com maneiras de se relacionar com o pensamento distintas daquela que até hoje tem sido hegemônica por aqui e que podem, e muito, enriquecer nosso pensar filosófico, transformando-o num sentir-pensar-fazer filosófico.

            Afinal, parafraseando o bigode mais bonito da Alemanha, também eu não poderia acreditar numa filosofia que não soubesse dançar!