O primeiro princípio da
lógica, chamado de princípio de identidade, afirma que o que é é. Em decorrência deste, temos, automaticamente, um segundo
princípio: o que não é não é. E,
nessa encruzilhada lógica, os antigos filósofos se depararam com uma questão:
Se o que é é e o que não é não é, como seria possível o devir – ou seja, a passagem do
não ser ao ser e vice-versa?
Aristóteles deixou-nos
uma contribuição interessante para a resolução da questão. Para o estagirita,
apesar de ser verdade que o ser é e o não ser não é, é preciso perceber que o
ser se apresenta de dois modos distintos: em potência e em ato. Desta
forma, uma árvore, por exemplo, quando é apenas uma semente, já pode ser
considerada, de um ponto de vista ontológico,
uma árvore, mas uma árvore em potência. Ao passo que todo seu potencial for se
atualizando, ela vai se transformando até se tornar uma árvore em ato. O
movimento, assim, de uma forma geral, seria justamente essa passagem da potência ao ato.
Ora, se, até nos
terrenos frios da ontologia, o movimento
e a transformação são possíveis, quem
dirá no campo da política, onde nós mesmos somos os atores do teatro social.
Regras são regras. É
verdade.
Contudo, apesar de
logicamente válida, essa afirmação não é aceitável de um ponto de vista humano,
considerando o humano em suas diversas dimensões, que, obviamente, estão para
muito além da dimensão lógica.
Por incrível que
pareça, apesar de o Cristianismo – como quase todas as religiões – ter se constituído
como um conjunto de regras inúteis que acaba servindo só para amarrar as
pessoas em seus próprios medos e serem, facilmente, dominadas, foi com Jesus
que eu aprendi sobre a natureza das regras.
Se tinha uma coisa que
havia nos tempos de Jesus, era regra. A chamada Lei de Moisés, seguida pelos judeus, regulava todas as instâncias
da vida, desde os rituais, as festas, os negócios, a justiça, etc. Era lei que
não acabava mais.
Jesus, obviamente, descumpriu
boa parte delas. Mas, apesar disso, ele mesmo afirmou que não tinha vindo para
quebrar a lei, mas para cumpri-la. A contradição – pelo menos aparente – parece
ser a marca registrada dos grandes mestres. Estão cagando para a lógica. Talvez,
já a tenham superado...
Mas, ainda assim,
quando questionado pelos que se incomodavam com sua liberdade, Jesus explicou
com clareza: a lei foi criada para o
homem, não o homem para a lei!
E, de fato, toda vez
que nos esquecemos deste óbvio, acabamos criando um monstro que nos engole e
nos torna tão monstruosos quanto ele.
Nenhuma regra existe
por si mesma. Foram todas criadas por nós e para nós, em um determinado momento do tempo onde o estado de
consciência de uma coletividade assim julgou necessário.
É natural, portanto,
que, conforme esse estado de consciência vai galgando novos patamares, essas
mesmas regras também demandem alterações ou, melhor ainda, simplesmente se
tornem desnecessárias.
E é por isso que Jesus
foi e é tão mal compreendido. Ele amou. Simplesmente, amou. E no amor – aquele
amor verdadeiro que lança fora todo o medo, de que falou João –, não há regras.
Ele mesmo – o amor – é a única lei.
A crucificação não foi
à toa. Não há nada mais revolucionário que o amor.
Para compreender melhor
a relação entre lei e existência humana, entretanto, não poderia deixar de
lembrar daquilo que nos traz a sensibilidade teológica – se é que isso existe –
de Nilton Bonder, o rabino gente boa da Barra da Tijuca.
Em seu clássico A Alma Imoral, Bonder se utiliza da
dicotomia corpo/alma, criada pela razão para explicar a experiência humana,
para fazer um paralelo com outra dicotomia que criamos para explicar o
desenvolvimento do nosso próprio ser e do mundo no qual estamos inseridos: a dicotomia
tradição/traição.
Se por um lado, o corpo
– com toda sua necessidade de preservação e manutenção da espécie – estaria
ligado analogicamente à tradição, que é a responsável pela criação de um
sentido não só social, como existencial, conferindo uma ordem ao nosso universo,
por outro, a alma –rebelde por natureza –, responsável por fazer arder em nós a
chama da transformação, seria aquela “parte” do ser encarregada de romper com
toda e qualquer barreira que se coloque no caminho do desenvolvimento humano.
Por isso, a alma trai.
Porque precisa trair para ser.
E, por isso, o corpo
insiste na tradição. É nela que ele encontra sua raiz.
Mas, assim como um
corpo sem alma não passa de um cadáver, uma tradição que se recusa ser traída,
não revela mais que um povo morto. O fim de uma história.
Regras são regras. É verdade.
Mas, como a verdade
cheira a morte, quebrá-las pode ser a maneira mais digna de honrar a vida.